É urgente alertar para os riscos de se ignorar a importância e o papel das instituições financeiras de desenvolvimento e da indústria microfinanceira, pois o sistema financeiro não se constitui apenas por bancos e bancarização. E é também urgente debater e reflectir se e como é que Moçambique pode promover a inclusão financeira e reduzir a pobreza absoluta sem ter um regime jurídico apropriado para instituições financeiras de desenvolvimento e para as instituições de microfinanças.
Em 2016, foi aprovada a ENIF (Estratégia Nacional de Inclusão Financeira) 2016-2022. Como fundamento desta estratégia, o Governo declarou que “a inclusão financeira é um factor essencial para reduzir a pobreza e aumentar a prosperidade”.
Na mesma altura, lançou-se o projecto “Um Distrito, Um Banco”, colocando à disposição de alguns bancos facilidades e fundos na ordem dos 480 milhões de meticais através do FNDS.
Na revisão de meio termo da ENIF, feita em 2019, dizia-se que “Moçambique fez progressos consideráveis no domínio da inclusão financeira durante a primeira metade do período de implementação da ENIF 2016-18.” Contudo, reconhecia-se que a “proporção da população adulta com acesso físico ou electrónico aos serviços financeiros prestados por uma instituição financeira formal” tinha passado de 36% em 2016 para 33% em 2018.
Apesar das facilidades postas ao dispor de bancos no projecto “Um Distrito, Um Banco”, as estatísticas mais recentes do BdM indicam que, de 2016 a 2023, a percentagem de distritos cobertos por agências bancárias (em proporção do total) passou de 76,6% para 79,4%, i.e., um crescimento de apenas 3,6%. Mas nos últimos dois anos (dados do primeiro trimestre de 2020 comparados com o primeiro trimestre de 2023), observa-se um retrocesso, pois o número de distritos com agências bancárias caiu de 128 para 123, i.e., uma redução de 3,1%.
Há outras indicações de alguns retrocessos que podem revelar os riscos de o sistema estar a agravar desigualdades sociais. Dois exemplos com base em dados do BdM:
Entre o primeiro trimestre de 2020 e o primeiro trimestre de 2023, as contas bancárias em percentagem da população adulta caíram de 30,3% para 29,8%, ou seja, uma redução de 1,4%. O mais notável é que esta redução ocorreu apenas em contas bancárias tituladas por mulheres, que reduziram 2,7%.
No negócio dos cartões bancários, entre o primeiro trimestre de 2020 e o primeiro trimestre de 2023, o número de cartões em percentagem da população adulta cresceu 0,4%. Mas o número de cartões tendo como titulares homens em percentagem da população adulta masculina cresceu 74,1%, enquanto os cartões com titulares mulheres em percentagem da população adulta feminina reduziu 45,4%. É também útil dizer que, neste mesmo período, o número de cartões detidos pela população rural em percentagem da população adulta rural caiu 5,4%.
Apesar destes retrocessos e questionamentos sobre a evolução do processo de inclusão financeira, verifica-se um acentuado crescimento no domínio da moeda electrónica.
Podemos, pois, concluir que o mercado financeiro digital está a situar-se como o principal instrumento de integração da população de baixo rendimento no sistema financeiro. Não necessariamente de inclusão financeira.
O que se pretende com Inclusão Financeira?
Está agora em preparação uma actualização da estratégia nacional de inclusão financeira. É o momento de nos interrogarmos sobre o que é e o que se pretende com esta dimensão.
Pode haver estabilidade numa economia assaltada por uma crescente exclusão social? Como pode a inclusão financeira impactar positivamente na inclusão e estabilidade social?
O problema do impacto da inclusão financeira deve ser colocado como uma questão que vai além do acesso apenas a produtos e serviços financeiros. O conceito de inclusão financeira vai muito além da chamada bancarização.
A inclusão financeira é um “conceito multidimensional que inclui elementos tanto do lado da oferta de produtos financeiros como do da demanda, sendo suas dimensões básicas o acesso, o uso, a qualidade e o impacto sobre o bem-estar financeiro das famílias e das empresas.” Inclusão financeira não se limita a “estar integrado no sistema” por ter conta bancária ou conta móvel, ou outro serviço financeiro. Inclusão pressupõe que o acesso e uso desses serviços financeiros impactam positivamente no bem-estar da família ou na sustentabilidade do negócio.
Este conceito de inclusão financeira não pode ser implementado se não se alterar a estrutura e funcionamento do sistema financeiro moçambicano.
A estrutura e composição de um sistema financeiro afectam a inclusão financeira de várias maneiras. Um sistema financeiro com muitas barreiras à entrada pode dificultar o acesso aos serviços financeiros para as pessoas de baixa renda. Além disso, um sistema financeiro com pouca diversidade de produtos financeiros pode limitar as opções disponíveis para as pessoas.
É urgente promover a diversificação do sistema integrando IFD e micro-finanças
A Gapi vive e debate o tema da diversificação do sistema financeiro desde que, há 35, anos se iniciou a reflexão que levou à sua constituição em 1990 como instituição financeira de desenvolvimento.
Os fundadores optaram pelo conceito de uma instituição capaz de intervir não apenas do lado da oferta, fornecendo serviços financeiros, mas também procurando melhorar a qualidade da procura, através de programas de literacia financeira que melhorassem a capacidade e eficiência no uso de serviços financeiros. Mais tarde, acrescentou-se à estratégia a componente de desenvolvimento de instituições para alargar a rede de parcerias. Por isso, a Gapi começou também a investir na criação de microbancos rurais e, em 2007, foi registada como Sociedade de Investimentos, ficando sujeita a supervisão prudencial.
Porém, o sistema de enquadramento legal tem colocado enormes barreiras ao modelo institucional da Gapi. Não porque não se reconheça o contributo desta instituição para diversificar a oferta, melhorar a inclusão, reduzir a pobreza e contribuir para a geração de emprego. As barreiras que a Gapi tem enfrentado resultam dos princípios que presidem ao quadro regulatório do sistema financeiro. Por outras palavras: ainda não existe na legislação e na regulamentação espaço para uma instituição gestora de fundos prestando esta combinação de serviços. É minha opinião que a nossa legislação tem sido demasiado influenciada por modelos onde a economia é dominantemente formal. Moçambique está num pólo oposto.
Mesmo assim, promovendo uma postura de permanente diálogo com os reguladores, a Gapi tem avançado com o seu projecto: contribuir para a edificação de um sistema financeiro mais inclusivo.
Felizmente não está só. Em conjunto com algumas instituições microfinanceiras (IMF), decidiu-se, em 2018, relançar a indústria das microfinanças, começando pela reanimação e reestruturação da AMOMIF (Associação Moçambicana de Operadores de Microfinanças).
As dificuldades e barreiras enfrentadas pelas instituições microfinanceiras levaram ao encerramento de dezenas dessas operadoras. Outras abandonaram as regras do sistema e passaram a operar como informais sem qualquer supervisão nem monitoria.
A nova direcção da AMOMIF desenhou um projecto que está a implementar e que tem como foco o estabelecimento de uma rede nacional de instituições microfinanceiras sustentáveis, devidamente licenciadas, com boa governança e operando com proximidade geográfica e cultural junto a microempresas e famílias de baixa renda, principalmente nas zonas rurais e periurbanas. O desenvolvimento destas capacidades e serviços são indispensáveis para preencher um perigoso vazio no sistema financeiro.
Neste projecto, das 12 instituições microfinanceiras que, em 2019, ainda eram membros efectivos da AMOMIF, hoje conta-se com 52 membros espalhados por todas as províncias. Está a apoiar os seus membros a instalarem software bancário para melhorarem a sua gestão e promoverem o acesso a programas de formação dos seus quadros e assistência jurídica.
Através da AMOMIF, as IMF estão agora a participar no Comité Nacional de Inclusão Financeira, dirigido pelo Banco de Moçambique.
Uma das grandes preocupações é a necessidade de um instrumento permanente de refinanciamento que permita aos membros elegíveis e com boa governança poderem capitalizar-se para alargar a sua capacidade de oferta de serviços. É também preocupação das IMF o sufocante sistema de supervisão, pois exige uma complexa e dispendiosa máquina administrativa e de gestão.
Reconhecendo a urgência e desafios da modernização, a AMOMIF está a preparar uma aliança com a Associação das FinTechs no sentido de estimular a cooperação entre empresas de tecnologias e os microbancos. As duas indústrias precisam uma da outra, pois a tecnologia precisa do elemento humano, i.e., da proximidade junto às famílias e microempresas, que vem da rede microfinanceira.
Em suma, com a nova AMOMIF e com a sua parceria com a Gapi, a indústria microfinanceira pode renascer e contribuir para que a estrutura do sistema financeiro seja menos polarizada em bancos tradicionais.
Excerto da intervenção de António Souto no Fórum de Economia e Finanças, realizado esta semana em Maputo. * António Souto é economista, fundador e conselheiro principal da Gapi – Sociedade de Investimentos. É, actualmente, presidente do Conselho de Direcção da AMOMIF